Georges Perec
Posfácio de Jean-Luc Joly
216 p. - 14 x 21 cm
ISBN 978-65-5525-251-4
2025
- 1ª edição
Publicado originalmente em 1974 na França — inaugurando a coleção Espaço Crítico, coordenada pelo filósofo Paul Virilio —, Espécies de espaços constitui ainda hoje uma experiência única, situada na fronteira entre o ensaio, o poema e a obra de arte conceitual.
Tal qual um Flaubert do último quarto do século XX, Georges Perec (1936-1982) lança um olhar afiado sobre o espaço que nos cerca e no qual vivemos. Arquitetura, artes visuais, poesia, cinema, antropologia, sociologia, geografia e muitos outros saberes são mobilizados para interrogar as diversas camadas que informam nossos hábitos e percepções. O resultado é um livro incomum que, ao discorrer sobre temas como a página, a cama, o quarto, o prédio, a rua, o bairro, a cidade etc., traz à tona aquilo que, de tão visto, nunca foi verdadeiramente visto.
O presente volume tem por base o texto da última edição, revista e ampliada, da obra de Perec, acrescida de um posfácio do pesquisador Jean-Luc Joly, que examina a formação de sua obra bem como sua crescente repercussão nas artes e na literatura, além de um caderno de fac-símiles inéditos que proporciona insights sobre as formas de anotação deste autor que Italo Calvino considerou “uma das personalidades literárias mais significativas do mundo”.
Texto orelha
Escrito a partir de uma encomenda de Paul Virilio e publicado em 1974, Espécies de espaços busca fazer um inventário do espaço. Não o espaço infinito ou intergaláctico, mas o espaço da vida, que está ao nosso alcance: a página, a cama, o quarto, o apartamento, o prédio, a rua, o bairro, a cidade, o campo, o país, o mundo. O livro passeia pelas linhas, curvas e formas que compõem a nossa existência mostrando que o espaço em que vivemos é descontínuo, heterogêneo e composto por vários pequenos espaços. A linguagem usada para tratar dessa realidade múltipla é igualmente fragmentada e cheia de tons e ritmos diferentes. “Diário de um usuário do espaço” (como definiu Perec), ao mesmo tempo que ensaio literário, notas de outros projetos em andamento, biblioteca de citações, manual de como se deslocar. A vocação descritiva da obra de Georges Perec — presente desde o seu primeiro livro, As coisas (1965) — aparece aqui em toda sua potência, sobretudo porque o gesto é nomeado: trata-se não de inventar o espaço, nem reinventá-lo, e, sim, de interrogá-lo, de vê-lo tal como ele é e produzir um catálogo. Mas como ver o que está diante de nós, se temos uma espécie de cegueira diante do cotidiano? Perec propõe pensar no ordinário (e no infraordinário), numa tentativa de esgotamento da questão do espaço, descrevendo o óbvio (“as ruas das cidades estão cheias de automóveis”), o clichê (um escritor escrevendo num determinado espaço), o simples (cada cômodo com sua função, “o quarto de dormir”), o insólito (uma casa sem portas). O exercício de descrição, contudo, vai além do simples inventário e aos poucos envereda para o campo da imaginação e da lembrança. Ao expor as ferramentas de ordenação dos espaços em que vivemos ele revela também formas de ver, de pensar e de habitar o mundo. Assim, por um lado, indaga-se o próprio espaço e a forma como ele é construído; por outro, evoca-se uma série de escritores, artistas e arquitetos que refletiram sobre o assunto, de modo que o livro se aproxima de outros discursos, como o arquitetônico e o antropológico. Comparecem alguns escritores da família literária de Perec, como Raymond Queneau, Júlio Verne, Laurence Sterne, Borges, além de artistas, como Escher e sua inversão dos espaços, o arquiteto Frank Lloyd Wright, com sua casa sem portas, e Gustave Flaubert, que imagina iluminar a cidade a partir das fachadas de cada casa, pintando-as com uma substância luminescente, capaz de brilhar no escuro. Com um humor muito próprio (entrevisto já na paronomásia do título) e um pensamento lúdico (lapidado nas oficinas do grupo Oulipo), Espécies de espaços é um inventário do espaço, mas também invenção de um outro espaço, um espaço de observação e reflexão. Não à toa o livro começa e termina com a escrita, com o alfabeto (espaço alefiano por excelência, que conteria todos os lugares): cria-se a realidade com a escrita, mas também se escreve para fazer sobreviver alguma coisa dela. Em um momento de crise das formas de habitar, este livro fornece saídas ao expor ferramentas para olhar, acenando para outras possibilidades de estar no mundo.
Marília Garcia
Sobre o autor
Filho único de imigrantes judeus poloneses que chegaram a Paris nos anos 1920, Georges Perec nasceu em 1936, num bairro operário da capital francesa. Em 1940, seu pai, Icek Judko, que se alistara como voluntário nas tropas francesas, morre em combate. Em 1942, para poupar o filho da perseguição nazista, sua mãe, Cyrla Schulewicz, o coloca num trem da Cruz Vermelha destinado à zona livre. Em janeiro do ano seguinte, ela é detida e deportada para Auschwitz, de onde não retorna. Perec será formalmente adotado por tios paternos em 1945 com o sobrenome original, Peretz, “afrancesado” para Perec. Durante a adolescência lê Joyce, Kafka, Queneau, entre outros, e começa a escrever. De 1954 a 1956, estuda história e sociologia na Sorbonne, mas abandona os cursos sem concluí-los. Nesse período publica críticas literárias em La Nouvelle Revue Française e artigos políticos em revistas como Partisans e Cause Commune. Em 1958, alista-se como paraquedista no exército; após a desmobilização, casa-se com Paulette Petras e passa um ano na Tunísia. No início dos anos 1960, segue os cursos de Roland Barthes em Paris, determinantes para a composição de seu romance de estreia, Les Choses [As coisas, 1965], que lhe rendeu o Prêmio Renaudot. Com um salário modesto, trabalhou de 1961 a 1978 como arquivista no laboratório de neurofisiologia do CNRS, o Centro Nacional de Pesquisa Científica, fazendo classificações, inventários e catalogação de dados científicos, o que não deixa de ter forte afinidade com sua escrita. Em 1967, ingressou no Oulipo, o grupo de pesquisa e criação poética fundado por Raymond Queneau e François Le Lionnais. Nesses anos, publica La Disparition [O sumiço, 1969], romance policial escrito sem a letra “e”, metaforizando o apagamento de seus pais (père e mère). Paralelamente, escreve roteiros para rádio e cinema — incluindo o filme Un homme qui dort (1974) — e cria palavras cruzadas para a revista Le Point. Em 1978, lança La Vie mode d’emploi [A vida modo de usar], espécie de caleidoscópio narrativo no qual aplica regras combinatórias para contar histórias que se passam num edifício parisiense, livro vencedor do Prêmio Médicis. Além de Espécie de espaços (1974), Perec compôs um grande número de obras que escapam à classificação, como La Boutique obscure [A loja obscura, 1973], em que narra 124 sonhos, ou Je me souviens [Eu me lembro, 1978], que enfileira 480 fragmentos iniciando com a fórmula “Je me souviens”. Perec faleceu em 1982, em Ivry-sur-Seine, França, dias antes de completar 46 anos.
Sobre o tradutor
Daniel Lühmann nasceu em Poços de Caldas, MG, em 1987, e é formado em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e mestre em estudos coreográficos pela Université Paul Valéry/ICI-CCN em Montpellier, França. Como dançarino e coreógrafo, dedica-se às interações entre texto e movimento. Como tradutor, assinou versões de autores como Daniel Arasse, Monique Wittig, Claude Cahun, Nastassja Martin e Paul B. Preciado, entre outros. Também desenvolve um trabalho autoral de escrita.
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